12ª edição - 2022 - Ações presenciais pela primeira infância no território
Relato de experiência
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul promove a 12ª edição do Prêmio Salvador Celia, uma iniciativa voltada à valorização das boas práticas de visitação domiciliar junto às famílias e comunidades atendidas. O prêmio é uma homenagem ao Dr. Salvador Celia, reconhecido psiquiatra infantil que dedicou parte da sua vida a estudar e promover ações de cuidado a bebês, crianças e famílias.
A 12ª edição do Prêmio Salvador Celia ocorre em um período de retomada das ações presenciais, que haviam sido parcialmente suspensas por conta da pandemia de Covid-19. Com o esforço das equipes municipais do PIM/Programa Criança Feliz (PCF) e das equipes da Atenção Primária à Saúde, o cuidado com a primeira infância se manteve ativo, apesar da necessidade de isolamento social. Neste momento, faz-se necessário identificar, dar visibilidade, reconhecer e compartilhar as experiências exitosas das equipes da Atenção Primária à Saúde no retorno dos atendimentos presenciais nos territórios.
Como parte das comemorações da 20ª Semana Estadual do Bebê, o Prêmio Salvador Celia será concedido para sete visitadores(as) do PIM/PCF e para sete agentes comunitários(as) de saúde (ACS), conforme regulamento descrito no edital de 2022.
Inscrição
Tema
Prêmio
Reconhecimento
Edital
Trabalhos premiados:
Visitadores PIM/PCF:
Macro Centro-Oeste: Juliana Ferrari da Silveira - Cacequi
A importância do acompanhamento na gestação
Em minha história, como visitadora na cidade de Cacequi, contarei sobre a minha gestante, a qual chamarei de Fátima. Fátima é uma mulher de 40 anos, que teve, em sua vida, outras duas gestações anteriores, pelas quais passou por complicações que a impediam de segurar os bebês até o final da gravidez. Ambas chegaram a apenas 5 meses.
Por sofrer de fibromialgia e depressão, ela consumia muitos remédios e já não tinha esperança de uma nova gravidez. Mas Deus, no tempo dele, atendeu o seu pedido e realizou seu sonho de se tornar mãe. Fátima engravidou novamente e, com a surpresa da notícia, levou um choque por não esperar. Começou seu pré-natal e o médico retirou muitas de suas medicações para proporcionar uma melhor condição para o bebê na gestação. Seu marido, na época, teve que realizar uma viagem a trabalho para outro estado e Fátima resolveu vir morar em Cacequi, junto da sua família.
Os primeiros meses foram complicados. Com a surpresa de ser mãe novamente e o medo da perda de mais um filho, suas emoções viraram complicações no seu dia-a-dia, quando ela era insegura e chorava na maior parte do tempo. Foi então que começamos com as visitas presenciais, nas quais conversávamos muito que também dependia dela mesma se ajudar nessa gestação.
No início da gravidez, cada mês que se passava era uma alegria por conseguir segurar seu bebê e, no dia de descobrir o sexo, com muita felicidade, Fátima descobriu que seria mãe de uma menina, que na história chamaremos de Vitória.
Na chegada do quinto mês, ela foi recomendada pelo médico a ficar de repouso, pois vinha sentindo muitas contrações. Nesse tempo, seu marido veio passar as festas de final de ano e, logo após, retornou para o trabalho na Amazônia com a certeza de que viria para o nascimento da filha.
A família de Fátima estava sempre presente ao seu lado dando apoio em todas as consultas. Em abril, com 34 semanas de gestação, ela começou a sentir as contrações do parto e, acompanhada da família, foi encaminhada para o Hospital de Santa Maria, onde logo deu à luz a pequena Vitória, uma menina linda, mas que pesava apenas 1.800 gramas. As duas ficaram “baixadas” no hospital em um quarto por cerca de 20 dias até Vitória conseguir o peso ideal e ser liberada para casa.
Realizei a primeira visita para conhecê-la e ver como as duas estavam. Foi quando me deparei com mais uma situação: Fátima ainda não havia registrado Vitória, pois estava esperando o pai dela. Com isso, contava apenas com as vacinas que tomou ao nascer.
Começamos a conversar com a equipe e tentar encontrar uma solução. A mãe estava certa de que o pai logo iria aparecer para ficar com elas, mas, a cada dia que passava, era perdido o tempo de mais uma vacina. Fátima levava a bebê ao posto, mas não conseguia realizar a vacinação, pois não poderia ser realizada sem a certidão e ela se negava a registrar Vitória somente em seu nome.
Como uma das soluções, entrou em contato com seu marido e ele encaminhou uma procuração por e-mail, mas sem sucesso pois não foi aceito no cartório. Por trabalhar em uma área de difícil acesso aos Correios, já não sabiam mais como resolver.
Nesse momento, a equipe do PIM entrou em contato com o Posto de Saúde alegando que a vacina era um direito da criança e todos estávamos preocupados, mas como as enfermeiras cumprem ordens, não foi possível elas abrirem uma exceção, pois é uma forma de incentivarem pais a registrarem seus filhos.
Depois de procurar diversas alternativas para o problema e muitas conversas incentivando o registro, seu marido conseguiu encaminhar por meio do Sedex a procuração pedida e Fátima, enfim, conseguiu registrar sua filha. Vitória foi levada direto para o Posto pela mãe, onde realizou todas as vacinas.
Para nós do PIM, depois de 3 meses de muita ansiedade e angústia junto à família, foi uma felicidade essa conquista, pois sabemos a importância da vacinação em crianças.
No momento, estamos dando apoio à Fátima e à Vitória, pois o pai não tem previsão de retorno para conhecer a bebê e ficar junto de sua esposa. Mas, graças a Deus, hoje, Vitória é uma criança linda, saudável e muito esperta que ilumina e enche de alegria a vida de sua mãe, Fátima.
Macro Serra: Geórgia Poleto Caetano - Caxias do Sul
O Cuidado Além das Fronteiras
A retomada dos atendimentos presenciais trouxe de volta o contato não apenas humano, mas com uma realidade territorial transformada pelos impactos do isolamento e também por novas pessoas e culturas que passaram a ocupá-lo. A história que a visitadora relata é de uma família venezuelana atendida pelo programa desde 2021, porém, pela visitadora, apenas a partir de abril de 2022.
Miguel, uma criança de 5 anos, apresentava crises de epilepsia frequentes, tendo crises de choro e risos que se estendiam por horas, além de ter dificuldade na comunicação e para brincar com outras crianças na escola de educação infantil que frequentava. A família havia vindo da Venezuela há dois anos e já estava se habituando à nova cidade e tendo contato com a rede municipal de serviços.
Desde o início, a mãe se abriu para a visitadora em ligações, mensagens e atendimentos presenciais e os três, entre a mistura do português e espanhol, encontraram um meio de campo para trocar vivências, brincadeiras e sugestões para o Miguel, que estava tendo crises cada vez mais frequentes. Assim, as atividades dificilmente eram possíveis de serem feitas, mas eram trocadas por escutas à mãe, que comentava como se sentia sobre tudo que estava vivendo. Miguel, mesmo sob efeito das medicações e um pouco apático, buscava participar, falando os nomes das cores, como “naranja como las arepas”, uma comida típica, e também ensinando para a visitadora que “rojo” pode ser vermelho para ele e roxo para ela.
Após alguns meses, Miguel foi internado na ala psiquiátrica do Hospital Geral da cidade por uma semana, com alucinações, agressividade e agitação psicomotora. Durante essa semana, foram realizadas escutas frequentes à mãe, que comentava se sentir muito nervosa, com medo e aflita pelo filho. Além disso, foi feito contato frequente com a rede de serviços, tanto com o hospital quanto com o CRAS que atendia a família, relatando a situação e buscando formas de auxiliar e informá-los da melhor maneira. A mãe, que era enfermeira, relatava já estar desacreditada no tratamento que o filho recebia, querendo que ele pudesse voltar a desenvolver sua autonomia, brincar e demonstrar para todos com que ele se relacionava a criança carinhosa que era com a família.
Miguel saiu da sua internação com um possível diagnóstico, troca do tratamento medicamentoso e novos acompanhamentos no CAPSi. Algumas semanas depois, a mãe relatava uma melhora no seu comportamento e mandava fotos das atividades feitas com o filho, como os dois desenhando seu corpo em uma cartolinha e ele participando ativamente. Nas visitas domiciliares, Miguel demonstrou estar mais alegre e disposto, conversando ainda mais com a visitadora, fazendo juntos “bolitas” de massinha de modelar, desenhando o rosto do “Miguelito” (como ele mesmo se chamava) e ensinando a coreografia da sua música favorita para ela. A mãe também comentava que ele estava tendo redução dos medicamentos que tomava e que às vezes a professora da escola relatava que o via, mesmo quieto, brincando com outras crianças.
Miguel foi desligado do programa por já estar na educação infantil e quase completando seis anos. Porém, mesmo tendo sido atendido pela visitadora por poucos meses, as trocas e aprendizados para todos envolvidos vão permanecer por muito mais tempo. O carinho que a família tinha pelo programa, a importância que viam nas atividades e sua preocupação com o desenvolvimento do Miguel mostram que a responsabilidade e o cuidado na primeira infância perpassa fronteiras. Importar-se com o desenvolvimento infantil é algo compartilhado por todos que acreditam no amor e no cuidado como ferramentas fundamentais para uma sociedade acolhedora e justa. E, acima de tudo, são esses princípios que possibilitam criar pontes onde, a princípio, há barreiras.
Macro Metropolitana: Franciele Rodrigues Etcheverry - Guaíba
Novos Horizontes
Hoje, iremos contar a história do início das visitas domiciliares à família de Gael, um menino que começou a ser atendido pelo PIM em junho de 2022. Gael e sua família moram em um bairro da zona sul de Guaíba, território atendido pelo CRAS Zona Sul. No momento, Gael está com dois anos e nove meses e mora com os pais, ficando aos cuidados da mãe enquanto o pai está no trabalho.
Quando iniciei as visitas com a família de Gael, estávamos ainda no outono, quase entrando no inverno, época em que os dias tornam-se mais acinzentados e escuros devido à neblina ou, como conhecemos por aqui, cerração. Quando chegava à casa da família, as janelas estavam sempre cobertas por cortinas fechadas, assim como as portas que também se encontravam fechadas. A casa era bastante silenciosa e minuciosamente organizada, com tudo em seu suposto lugar, parecendo nem ter evidências de que havia uma criança na casa.
O silêncio que eu observava, além de dizer um pouco sobre a dinâmica familiar, também parecia se tratar de um silêncio que dizia sobre o que também estava sendo compreendido e elaborado pela família: um diagnóstico recente de Autismo. Nas visitas iniciais, a mãe de Gael relatava ter recebido o diagnóstico havia um mês e que a família ainda estava pensando no que fazer, onde levá-lo, o que fazer diante dessa nova realidade. Era possível perceber no silêncio e nas poucas palavras, a angústia de não saber como estimular o filho bem como as inseguranças sobre seu futuro, preocupações típicas de pais que percebi potencializadas diante da notícia.
As visitas à família de Gael são realizadas pela manhã, perto do meio dia e, por vezes, quando eu chegava, ele estava aninhado no colo de sua mãe, ainda com sono, volta e meia pedindo pelo colo e aconchego da mãe durante as atividades e brincadeiras. A mãe relatou que Gael gostava de correr. Então, na primeira visita, brincamos todos juntos de trem. A brincadeira se sucedia da seguinte forma: com um colchonete, a mãe ia movendo-o pela casa, imitando o som que um trenzinho faz. Gael emitia muitos sons naquele momento e movimentava suas mãos, o que a mãe relatou como expressão de alegria.
A partir deste momento, pude conversar e acolher a mãe, sinalizando que as visitas do PIM poderiam contribuir com a estimulação de Gael por meio de objetos e atividades simples no dia-a-dia da família. A cada semana, pude ver que os móveis da casa começaram a mudar de lugar, que as cortinas se abriram fazendo com que Gael pudesse ver a cerração, mas também os dias de sol, os animais, as pessoas, a vida ao seu redor. Pude perceber este processo, pois muitas vezes, quando chego em sua casa, vejo-o olhando pela porta de vidro o que está acontecendo do lado de fora da casa. Noto Gael reagindo aos sons como os latidos dos cães, mas, também, a movimentação das pessoas que passam andando pela rua. Nos dias de sol e que não está tão frio, a mãe de Gael relata estar levando-o para brincar no pátio para que possa correr e brincar ao ar livre.
Com o passar das semanas, continuei levando atividades que explorassem a motricidade e os sons do cotidiano para Gael e sua família. Trabalhamos com “dedoches” e os animais da fazenda, quebra-cabeças e desenhos para pintar. A mãe de Gael, por vezes, me dizia que talvez o filho não conseguisse fazer as atividades, mas, nas visitas, sempre trabalhamos para que ele pudesse fazer as atividades dentro de suas possibilidades e com o apoio da família, de modo a sempre respeitar sua singularidade.
A casa que antes era totalmente silenciosa passou a ser tomada por sons emitidos por Gael ao brincar, correr e interagir com os pais e familiares. Sons que perduraram para além das visitas, pois, com o apoio dado durante as idas à família, a mãe relata que os pais passaram a estimular mais Gael com suas próprias ideias e iniciativas. Um exemplo disso foi um dia em que cheguei para realizar a visita e a mãe me relatou que, durante a semana, após terem colorido um desenho com o filho, estavam ensinando as cores para Gael e ele já estava ensaiando falar a palavra “azul”. O orgulho e felicidade sentidos pela mãe naquele momento me fizeram perceber o quanto as visitas são importantes para apoiar e incentivar o vínculo familiar.
Durante o mês de julho, trabalhamos com atividades sensoriais nas visitas, produzindo uma caixa sensorial, com materiais recicláveis. Enquanto a mãe de Gael e eu produzíamos a caixa, Gael já trazia suas pecinhas e já estava brincando antes mesmo dela estar pronta. Dias depois, a mãe me relatava que, de tanto brincar, Gael um dia entrou na caixa e esta acabou rasgando, o que nos fez pensar em produzir uma caixa sensorial maior que ele pudesse brincar dentro, como uma cabana.
Também, ao longo deste mês pude perceber que Gael estava movimentando suas mãozinhas, com intenção de acenar para dar “Oi” e “Tchau”, mesmo que durante o contexto das brincadeiras e atividades. A mãe me relatou estar impressionada e que atribuía às visitas e atividades que realizávamos juntos este aprendizado, pois, sempre que o visito, quando chego e vou embora, me despeço acenando e conversando com Gael. Também continuei a incentivar que os pais e demais familiares possam motivar Gael e conversar com ele, possibilitando-lhe ser estimulado e que lhe seja endereçado este olhar de alguém com possibilidades a serem vividas.
As visitas à família de Gael me fazem refletir sobre as possibilidades de parentalidade e dos contextos que entremeiam essa relação. Para que os pais de Gael pudessem estimular o filho, primeiramente, eles teriam que ser estimulados e apoiados e que lhes dessem o suporte neste novo momento. O programa PIM tem possibilitado uma compreensão dos pais do momento que tem vivenciado com Gael, que é o primeiro filho do casal, assim como lhes dado suporte para estimulá-lo, o que já tem tido resultados visíveis, seja na realização das atividades, mas também do desenvolvimento de Gael, que parece ter crescido e estar cada vez mais ativo a cada visita.
Inicio meu relato falando desta família que hoje são cinco indivíduos: o casal e os três filhos, sendo o atendimento específico para o filho mais novo, que é autista. A entrada na família foi fácil, mas, com a criança, relato que teve resistência. Assim, o uso do mesmo uniforme e sacola do programa, onde ele identificava os pezinhos e a logo do município, facilitou minha entrada na casa. Da mesma forma, acontecia com a agente comunitária de saúde (ACS) do bairro. O trabalho em conjunto foi essencial para dar o suporte que a família necessitava no momento.
Ao nascer, não foi visto nada de diferente na criança, mas, como a criança foi crescendo e, na escolinha, não se alimentava com o cardápio escolar e não interagia com as crianças da mesma idade, a escola encaminhou para avaliação e diagnóstico. Ali, começava uma nova etapa para a família, sendo que desconfiavam que algo estava diferente, mas não queriam aceitar, pois têm outros dois filhos mais velhos com desenvolvimento dentro do esperado.
Neste processo de diagnóstico, a criança perdeu os avós que viviam na mesma residência com cômodos divididos. Este fato também alterou a rotina da criança. Tinha muita dificuldade na escola e precisou de uma auxiliar, que não chegou de imediato para ajudar na escola, mas, depois que conseguiu, foi cada vez mais fácil sua adaptação escolar. A família não conseguia assimilar a ideia de uma criança com autismo e que precisariam mudar algumas coisas na rotina familiar. Após orientação, com afeto, a família entendeu que a dedicação faria muita diferença para o desenvolvimento do filho.
A criança usava fraldas, chorava na escola e estava com alimentação seletiva, não se alimentava com a merenda, somente se alimentava com leite e, muitas vezes, a mãe era chamada para buscá-lo por situações especiais com a criança. Com muita dificuldade, a família fez várias corridas de carro para terapias, especialistas e médicos. A família não conseguia ir a eventos para se distrair por causa da condição da criança, que não conseguia conviver com outras pessoas e barulhos.
Foi encaminhado o pedido de Benefício de Prestação Continuada (BPC) através do GTM da Assistência. Com dificuldades e insistência, foi aprovado. Este valor auxilia nos custos de terapias, já que a mãe, ao receber o diagnóstico, deixou o trabalho para se dedicar integralmente à criança.
A criança, com muito estímulo e orientação, muitas vezes, fazia as atividades fora do horário da visita. Os pais realizavam de acordo com o desejo da criança. Hoje, a criança tem seis anos e está finalizando o atendimento do programa. Está cada vez mais habilidoso e surpreendendo em evolução. Minha experiência é de que vale a pena você investir em conhecimento pessoal para atender as famílias e, profissionalmente, é gratificante saber que fiz parte das conquistas desta criança dentro da sua própria cultura e superando os desafios.
Lembro-me claramente do meu ingresso como visitadora nos projetos Primeira Infância Melhor e Criança Feliz. Era abril de 2022 e, apesar da pandemia de Covid-19 ter dado sinais de um cenário estável, o medo ainda era gigantesco.
Por meses, víamos nos jornais e noticiários que devíamos evitar contato com pessoas em prol da nossa segurança, porém, com a retomada presencial das atividades, tínhamos o desafio de novamente estar adentrando nos bairros e, mais que isso, nas casas das pessoas. Portanto, fui em busca de famílias interessadas em participar do programa nas periferias do município de Passo Fundo/RS e, assim, conheci Marisol e Josemar.
Muito humildes, sempre ofereciam a única cadeira disponível em sua casa para que eu sentasse, dizendo que não se importavam em ficar em pé. Ambos trabalhavam como catadores de lixo, porém Marisol estava grávida do seu segundo filho e permanecia mais tempo em casa dado que estava nos últimos meses de gestação.
Sabia de sua existência devido às informações fornecidas pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do bairro Planaltina. No nosso primeiro contato, ainda sem muita experiência, fui até a residência com a expectativa de que a família se interessasse pelo projeto tanto quanto eu e, assim, apresentei-lhes o programa e disse todos seus benefícios. Nesse instante, treinamento algum poderia me fazer compreender a dimensão dos projetos que estava iniciando e seu impacto para mim e para a vida das famílias assistidas.
O interesse foi mútuo e os pais quiseram entrar no programa, mas, ligeiramente, disseram: “A senhora vai se impressionar. O Miguelzinho é fogo”. Estranhei a expressão formal, pois soava como se eu fosse alguém importante o suficiente para ser chamada de senhora. Eu, com 22 anos, estava sendo chamada de senhora por pessoas com o dobro da minha idade. Aquele comentário parecia um aviso prévio, como quem questiona não a minha capacidade em atendê-los, mas, sim, o meu desejo. Se eu, realmente, queria me envolver em suas histórias.
Logo respondi que gostaria de atendê-los e que qualquer dificuldade seria trabalhada. Uma, duas, três visitas e percebo que Miguelzinho realmente é fogo. Ele, facilmente, ficava irritado e começava a bater em sua cabeça. Mesmo tendo quase três anos, ele não se comunicava verbalmente e brincava de uma maneira muito atípica.
Assumo que ficava frustrada, pois levava as atividades e ele não demonstrava interesse, mas, de uma maneira menos lógica, se envolvia e brincava. Ficou claro que era eu quem tinha que entrar na brincadeira dele e, mais que isso, usar de tudo que ele já conhecia para poder apresentar o novo. Para ele, eu não deveria ser apenas um ser que só transmite conhecimento, mas, sim, alguém que estava ao seu lado, disposta a conhecer e acolher sua distinta e intrigante maneira de ver o mundo.
Certa vez, levei para ele um desenho para colorirmos juntos com uma caixa de lápis de cor. Ao contrário das outras crianças, ele não pintou, não importava o quanto eu me esforçasse para envolvê-lo na atividade ou os pais tentassem motivá-lo a participar. Após algumas tentativas, propus então que ele me ajudasse a guardar os lápis e, naquele instante, para ele, a brincadeira havia começado.
Percebi que guardava e retirava os lápis da caixinha repetidas vezes, esboçava um sorriso tímido e se mostrava orgulhoso quando concluía a tarefa. Assim, notei a forma como o projeto me ensina que cada criança tem um jeito único de funcionamento e que o afeto, paciência e dedicação são vitais para um desenvolvimento saudável.
Enquanto estudante de psicologia, fiquei atenta desde o início a alguns comportamentos do Miguel que poderiam ser indícios de um transtorno, mas tive receio em patologizá-lo prematuramente, até porque sugerir para os pais que seu filho precisaria passar por uma avaliação cognitiva não é uma tarefa simples.
Inicialmente, eles falavam que Miguel “só era muito bravo e preguiçoso”, como meio de justificar o que se passava com seu filho. De fato, era visível que os comportamentos e a ausência da fala não eram falta de estimulação dos pais, que eram muito atenciosos com sua criação.
Diante disso, julguei que a melhor alternativa para o momento era manter o foco na criação do vínculo enquanto respeitava o ritmo da família em assimilar que o filho não estava dentro do desenvolvimento esperado para sua faixa etária. Fiz questionamentos sobre algumas condutas e sua frequência e, após algumas semanas, Josemar, com a mesma humildade de sempre, me perguntou: “a senhora acha que ele tem alguma coisa?”.
A preocupação em seu tom de voz era clara, sem saber como ajudar Miguel nas crises em que violentamente começava a bater a cabeça. Pela primeira vez, os pais haviam reconhecido que aqueles comportamentos eram incomuns e foi então que introduzi a possibilidade de encaminhá-lo à Secretaria Municipal da Saúde para que realizasse uma avaliação cognitiva. Reafirmei a importância do encaminhamento para outras instâncias, dizendo que preferia encaminhar a criança para uma avaliação e ela não ter diagnóstico do que permanecermos incertos e sem saber a maneira mais adequada de cuidá-lo.
Atualmente, Miguel está em processo de avaliação e, enquanto aguardamos o resultado, eu e os pais nos comprometemos em fazer todo o possível para que seu desenvolvimento ocorra de maneira plena e saudável. Hoje, compreendo o receio que os pais tiveram em apresentá-lo. Dificilmente, as pessoas sabem lidar com uma criança com hábitos e comportamentos diferentes do que é típico e acabam por negligenciar essas particularidades e desconsideram outras formas de existência e visões de mundo.
Percebo que é nesse contexto que os projetos devem estar, dado que a insegurança da família não foi apenas em assimilar que seu filho necessitava de cuidado especializado, mas na incerteza em relação ao auxílio que teriam. Comumente, a população atendida pelos programas passa por um processo de vulnerabilidade e invisibilidade social e, por esse motivo, cria-se o sentimento de abandono e desamparo que é visto nas falas de Marisol ao informar o receio da família em ficar desassistida e eventualmente não ter mais minha presença enquanto visitadora.
Em razão disso, a criação de um vínculo seguro não deve ser vista como uma atividade secundária, dado que o instrumento que garante o êxito do programa é a conexão estabelecida entre visitador e família. Através de um bom relacionamento cria-se confiança, respeito e afetividade e, especialmente para as famílias, os sentimentos de visibilidade e valorização. No entanto, acontecimentos como a pandemia afetaram de uma maneira brutal a periferia, devido à dificuldade de se proteger e à necessidade de continuar gerando renda.
Abrir as portas da sua casa para uma até então desconhecida em um momento pandêmico é uma ação que envolve no mínimo coragem, a qual não falta para as famílias atendidas pelos projetos, que todos os dias são desafiadas a se reinventar. Ao relembrar de nosso primeiro encontro e do uso da expressão “ele é fogo” pelos pais de Miguel para defini-lo, percebo que essa afirmação deva também ser reinventada e deixar de ter um aspecto negativo. Afinal, assim como o elemento fogo deu início à evolução da humanidade, o fogo em Miguel dá visibilidade e sinaliza a importância de evoluir o cuidado na primeira infância e considerar que cada criança possui um mundo inteiro dentro de si e cabe a nós auxiliá-los na tradução das suas vontades, no enfrentamento das dificuldades e na comemoração de suas conquistas.
Era uma tarde quente no território com inúmeras famílias sentadas na frente de suas casas fugindo do calor daquela sexta-feira. Estava me preparando para ir conhecer a família da Júlia, da qual sabia só o nome naquele momento. Fui informada que estava gestante e que iria acompanhar ela e o filho Miguel, de três anos.
Cheguei à casa dela por volta das três horas da tarde. Encontrei-a sentada no quintal descascando camarões e Miguel sentado ao lado do pequeno pé de araçá. Me apresentei e apresentei o programa. Engatamos uma conversa enquanto ela fazia muitas coisas ao mesmo tempo. Eis que, em dado momento, ela me fala sobre a indicação de repouso, pois já havia perdido um bebê e que aquela também era uma gestação de risco, mas, naquela tarde, percebi que não seria fácil, pois ela era muito ativa e não conseguia conceber a ideia de repouso absoluto.
Miguel já mergulhou de cabeça desde o primeiro dia nas atividades, motricidade fina muito bem desenvolvida, o que, mais adiante, vi que era porque havia bastante estímulo por parte da Júlia e do pai, Gabriel. Sempre recebia as fotos dele fazendo as atividades, o que me deixava extremamente satisfeita com o trabalho desenvolvido e muito feliz com os progressos.
Durante todas as minhas visitas pude ir conhecendo melhor o contexto daquela família, o que, mais tarde, com os relatos da Júlia, pude entender algumas coisas, como o grande medo dela de deixar o Miguel com estranhos, por exemplo. Havia sido abusada por grande parte da infância pelo próprio pai, Julia lutou por muito tempo para que o sobrenome fosse retirado do seu nome e do nome do Miguel. Nos últimos meses, o processo teve um pouco mais de avanço, o que trouxe um certo alívio.
O nervosismo para a chegada da Isis estava grande e, com todo amor do mundo, ela me mostrava as roupinhas da Isis e presentes que havia ganhado no seu chá de fraldas. Tivemos muitas conversas e trocas que, logo após o nascimento da Isis, ela me disse que foram muito importantes para ela naquele período.
Com o Miguel, tivemos muitos avanços na comunicação. Ao passo que sua motricidade fina era impecável, a linguagem era o que mais precisávamos trabalhar. Não se entendia muito bem o que ele falava, pois falava muito rápido. Junto da Júlia, montamos atividades e estratégias para que, no momento em que eu não estivesse presente, ela e o Gabriel reforçassem uma comunicação que fizessem com que o Miguel contasse em detalhes como fora seu dia, seu passeio na casa da avó, o que ele mais gostou nas atividades do atendimento da semana. Ali, se marcou nosso maior progresso.
Isis veio ao mundo bem antes do tempo, mas com bastante saúde, e Júlia também, saudável e feliz, como toda mãe que traz um filho saudável e perfeito ao mundo. Após o nascimento, quem me atualizava primeiro sobre a Isis era o Miguel. Quando ela sorria para ele durante a semana, quando tomava banho e agora eram poucas as vezes que precisava pedir para ele repetir alguma palavra. Estava um pouco mais calmo ao falar, mas sempre eufórico para me dar notícias dela.
Uma família que, infelizmente, está em situação vulnerável financeiramente, que luta todos os dias, que são amorosos uns com os outros, que tem os programas sociais do governo ao seu lado dando suporte, que tem uma mãe que passou pelo que ninguém nesse mundo deveria passar, mas é forte como uma leoa. O puro suco brasileiro. Estamos aqui lutando pelos nossos todos os dias e não desistimos.
Como estudante de serviço social e visitadora do PIM há 1 ano, busquei sempre trabalhar no intuito de incluir e garantir o acesso a políticas públicas de saúde, educação e assistência para as famílias atendidas pelo programa e, com as famílias de imigrantes, não foi diferente.
Levei a proposta de atender famílias de imigrantes com filhos que se encaixassem nos critérios do programa, que residiam nos bairros de maior vulnerabilidade social e tinham cadastro único atualizado. A proposta foi analisada, bem vista e apoiada pela coordenação do programa.
Logo, foi feito o contato com a rede socioassistencial do município, CRAS e Casa do Imigrante para verificar famílias que são acompanhadas pela rede e se enquadravam nos critérios do programa, Tivemos retorno positivo e organizamos a busca ativa das famílias para a realização dos cadastros. Inicialmente, os cadastros foram de famílias imigrantes venezuelanas. Tive o grande privilégio de ser a primeira visitadora do programa a fazer o cadastro de famílias imigrantes venezuelanas no município e, consequentemente, atender as crianças.
O maior medo, inicialmente, foi a comunicação. De não ser compreendida pela criança e que elas não compreendessem as atividades. Mas logo percebi que esse medo era banal, pois todas as crianças ansiavam pela visita e aguardavam com entusiasmo as atividades que eram levadas. E, desse modo, fui aprendendo, em conjunto com a criança e a sua família, pequenas palavras para melhor nos compreendermos.
As famílias imigrantes trazem consigo uma bagagem muito grande, muitas vezes de dor, sofrimento, angústia, medo e solidão, mas também demonstram uma grande perseverança, pois se mudam para um país totalmente diferente e buscam garantir um futuro melhor para seus filhos, de realizar sonhos e principalmente de serem felizes.
Trabalhando em conjunto com a família, consegui, durante os atendimentos, levar o quão importante é o estímulo da criança ainda na primeira infância e desmistificamos preconceitos e medos que a família tinha, além de auxiliar na linguagem da criança e, comitantemente, a da família, que só falava em espanhol.
Há aproximadamente 11 meses, faço o acompanhamento de um menino, imigrante venezuelano, que reside em um dos bairros de vulnerabilidade do município. Ele aguarda ansiosamente a visita toda a semana e sempre relata o desenvolvimento da atividade da semana anterior com a família. Ele adora historinhas e pede para que conte uma toda semana, além de termos aprendido em conjunto as cores, frutas, animais e objetos, pois, durante os atendimentos, levo a ele o nome e imagens em português e ele as retrata em espanhol. Atualmente, ele identifica todas as cores em português e em espanhol, além de frutas, animais e objetos.
Nos atendimentos, além de acolher a criança, também acolhemos a família e somos vistos como intermediários de acesso a direitos básicos e interlocutores frente à rede de assistência, saúde e educação, pois conseguimos desempenhar um papel fundamental levando demandas que surgem durante as visitas. Diante disso, em conjunto com o CRAS e a Casa do Imigrante, conseguimos que as famílias participem dos programas sociais disponibilizados pelo município, como Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), oficinas do CRAS, campanha de agasalho, além de auxiliar nas informações sobre educação, como a obrigatoriedade de estar matriculado na escola a partir dos quatro anos e inscrição para vaga de EMEI. E, na saúde, não é diferente. Orientamos sobre a importância da vacinação, pré-natal para gestantes, referência de posto de saúde e atendimentos médicos.
Fazer o acompanhamento de famílias imigrantes está sendo um privilégio. Aprendo muito com eles, tento ensinar o máximo que consigo e, dessa forma, os atendimentos se tornam leves, agradáveis e muito proveitosos. Gratidão, PIM e famílias imigrantes, por me ensinarem tanto e me fazerem ser uma profissional melhor.
Agentes Comunitários de Saúde
Em nosso município, contamos com a suplementação de vitamina A e ferro (vitamina A de 6 meses a menores de 5 anos e suplementação de ferro de 6 meses a menores de 2 anos). Temos muitas famílias em condições de vulnerabilidade social. Então, nessas comunidades, sempre fizemos a suplementação de vitamina e ferro, assim como nas outras localidades. A suplementação sempre aconteceu com algum tema, ou seja, uma festinha para receber essas crianças e implementá-las com muito carinho, trazendo algo lúdico para elas. Antes da pandemia sempre eram contratados brinquedos infláveis e cama elástica. Também, sempre produzimos alimentos feitos à base de vitamina A e ferro para estas crianças degustarem no local.
Com a chegada da pandemia, foi difícil decidirmos como seria a nossa suplementação, sabendo que tudo o que fazíamos não se enquadraria com a pandemia e os cuidados a serem tomados. Na primeira data dentro da pandemia, resolvemos fazer domiciliar. Então, cada agente comunitário fez sua lista de crianças e, em uma reunião de equipe, traçamos o roteiro com a enfermeira que faria a suplementação. As mamães foram avisadas e orientadas a nos receber fora da casa e, assim, com todos os cuidados de higiene, fomos suplementando um a um em seus domicílios.
Passaram-se seis meses e tínhamos uma nova data de suplementação. Ali, estávamos nós já mais tranquilos quanto à pandemia, mas com todos os cuidados necessários, recebendo nossas crianças para fazer a suplementação. Nesta segunda data, já elaboramos algumas de nossas receitas típicas de vitamina A e ferro como panquecas de cenoura, beterraba recheadas com fígado bovino, bolos de cenoura e milho, bolachinhas de beterraba e cenoura. Tendo em vista a pandemia, não podíamos fazer a degustação destes alimentos no local. Então, elaboramos mini marmitinhas para as crianças levarem para casa juntamente com o livrinho com todas as receitas para que suas famílias pudessem fazer. Mesmo com muitas dificuldades, não deixamos de lado a importância de prevenir e cuidar dos nossos pequenos, cumprindo com o nosso objetivo de manter essa ações, o que sempre foi e será importante.
Suplementando com amor.
Tomo a liberdade de falar aqui não somente da agente de saúde, Gisele, mas, também, da mãe e mulher que se atravessa nesta agente.
Sou mãe de dois filhos e, respeitadas as proporções, às vezes me sinto também mãe dos que pertencem à minha área de atuação. Também sou o resultado de duas gestações, várias vivências e sou testemunha de que nunca uma experiência é igual a outra, assim como um filho precisa ser diferente do outro. Falando de meus filhos genéticos, eles me transformaram. Dizendo dos filhos que encontro no meu trabalho, me sinto abençoada por poder estar perto de outras mães, compartilhar minhas vivências e expectativas e, principalmente, poder perceber que elas, ao seu modo maternal, buscam passar ensinamentos significativos aos seus filhos.
Um certo dia, uma enfermeira atendeu uma família na unidade de saúde no centro da cidade. Aqui na serra Gaúcha, é muito frio. Minha colega não pôde deixar de notar que eles usavam poucas roupas. Conversou com eles e viu que haviam vindo de fora, de outro estado. Estavam há pouco tempo morando aqui. Logo verificou onde moravam, que seria no interior, na minha área de abrangência. Então, me contatou e fizemos uma forma de cuidado primário. Buscamos arrecadações de roupas e brinquedos para levar para eles.
Fui à procura do endereço passado para nós. Por conta da pandemia, estávamos apenas retornando com visitas presenciais nos domicílios. Foi um desafio entre a ansiedade pelo novo normal, e a expectativa de estar mais próxima dessa família. Eu não os conhecia. Chegamos nesta casa, nos identificamos, entregamos o que conseguimos arrecadar. Fui realizando o cadastro deles e buscando criar um vínculo com aquela mãe. Verificamos que duas famílias moravam ali juntas e pude perceber que tinham poucas coisas. Como vinham de outro estado, traziam consigo somente as malas de roupas. As crianças brincavam com os brinquedos recebidos. Elas estavam todas aos cuidados daquela mãe enquanto os demais adultos estavam trabalhando, já que a casa era cedida pelo patrão do lugar. Fui ouvindo e passando as informações da UBS e pude ver que tinha vacina das crianças pra fazer também. Dei todas as orientações para ela e expliquei meu trabalho.
Então, ela me avisou que havia outra família ali do lado também que tinha vindo com eles. Logo, imaginei como seria lá, agradeci as informações recebidas, avisei que voltaria novamente e me direcionei até a casa ao lado.
A casa era bem pequena, de um cômodo só, e eu podia ver a casa inteira. Encontrei uma mulher com um bebê no colo, que se apresentou como Maria, e sua bebê Kauana, de 7 meses. Lembro de observar por de trás da cama, sua irmã de três anos, Ana Clara. Seu cabelo era igual ao de minha filha, todo cacheado, e me deu vontade de pegar no colo, mas, devido à pandemia, precisei me negar a este gesto. Também notei que tinham muito pouco para viver, até menos que a casa ao lado. Esta realidade, de alguma forma, partiu meu coração e junto a esta emoção, lembrei que, em meu carro, havia um unicórnio que meu pai tinha me dado, o qual eu coloquei de enfeite neste.
Não pensei duas vezes. Busquei e entreguei de presente para Ana Clara. Vi sua alegria na hora, pois não vi brinquedos pela casa. Com meu coração mais tranquilo, continuei meu trabalho como na casa anterior. Principalmente, orientei para agasalhar as crianças, falei sobre o CRAS de nossa cidade e ela me disse que já tinha ido buscar cobertores lá. Estando tudo melhor encaminhado, me despedi prometendo voltar e tentar conseguir algum agasalho. Assim o fiz. Voltei por mais algumas vezes para visitar essa família, mas acabaram voltando para sua terra.
Mais ou menos um ano depois, enquanto passava naquela região, encontrei-os novamente. Haviam voltado. Conversando com Maria, ela me falou que aqui pode até ser frio, mas pelo menos tem emprego e comida, que é triste se afastar dos demais familiares, mas aqui as crianças estão bem. Para minha grande surpresa, vejo Kauana já crescida, Ana Clara linda e sorridente com o unicórnio em seus braços. Estava igual, todo cuidado como eu lhe dei. Isso que sua mãe me disse que ela não largava por nada ele, nem pra dormir.
Precisei cuidar para as lágrimas não entregarem meu choro interno. Passei o resto do dia pensando em Ana Clara, fazendo algumas ligações com vivências de minha filha, e neste bichinho que para mim não teve tanto significado quanto para aquela criança, que mesmo tão pequena, já me mostrava tanto sobre gratidão e carinho, elementos tão difíceis de encontrar em meio à pandemia e, muitas vezes, em minha rotina no trabalho e na vida como um todo.
Além de meus filhos, ela também me transformou. Meu trabalho me transforma, pois na mala, levo meu coração e, por isso, os pequenos gestos se tornam tão grandes. Os desafios do meu trabalho como agente de saúde acabam parecendo até menores nestes encontros. Comecei essa escrita dizendo de mim como mãe e termino dizendo de mim agradecida, apesar de todos os desafios, pois a mala está cheia de bons encontros.
Sendo assim, eu que agradeço!
Sou ACS há vários anos e sempre trabalhei na comunidade. Há aproximadamente 15 anos, residia nessa comunidade a Dona Tereza, mulher jovem, humilde, com duas filhas pequenas: Ana, de dois anos, e Paula, de oito meses. O marido, jovem alcoólatra. Ambos estavam desempregados. A única renda era o Bolsa Família. Na época do fato a seguir, era inverno e muito frio. Dona Tereza foi passar uns dias na casa da mãe em outro bairro. Faltava comida e lenha para aquecer a casa e sua mãe era o suporte da família. Nessa ocasião, Paula, chorosa, com dificuldades de fazer cocô, abdômen distendido, passou por consulta e o médico, clínico geral, receitou um supositório. Como Dona Tereza não sabia usar, chamou a ACS que atuava naquele bairro para ver como usar o supositório. Foi então que tudo começou. A colega, ao realizar a higiene, percebeu que a menina Paula não tinha o ânus. Por eu ser a ACS da família, ela me chamou, voltamos ao médico que havia consultado e o mesmo a encaminhou para o hospital de referência em alta complexidade de nossa região, que fica a 200km de distância, onde fomos para a primeira consulta com o especialista no assunto. Na avaliação e com exames clínicos, foi detectado infecção urinária bem significativa e ela ficou internada de imediato.
Deixei Dona Tereza chorando com Paula em seus braços, voltei com coração em pedaços para buscar ajuda junto ao poder público, pois naquela família faltava tudo. Fiz várias viagens levando roupas e alimentos. Foram quatro meses de internação, pois Paula fez uma pneumonia também. O médico nos informou que a cirurgia com implante de intestino e reconstrução do ânus precisava ser feita antes de Paula completar um ano. Então, o tempo era curto e ela precisava ficar bem. A menina guerreira realizou a cirurgia e tudo correu bem. Por cinco anos, acompanhei a família e a menina Paula nos retornos às consultas e, hoje, graças a Deus e à equipe médica, Paula é uma moça saudável. Essa é a história que marcou minha vida de ACS.
Quero relatar um fato que aconteceu na minha microárea de trabalho. Sou ACS há 19 anos e, com certeza, essa foi uma das situações mais difíceis, se tratando de criança.
Em uma manhã de inverno, saí para minha rotina de trabalho. Cheguei à localidade e logo fui informada pelos vizinhos que tinha vindo uma família nova com criança. Fui à residência. A situação era desoladora. Tinha tanta fumaça na casa que era quase impossível entrar. Fui recebida pela jovem mãe, que me acolheu no interior da casa, pois estava muito frio. Logo perguntei pela criança e ela disse “está aqui”. Olhei e a surpresa só aumentava: em um sofá velho, envolta em panos muito sujos e, para piorar a situação, estava muito próximo ao fogão a lenha, sem porta e sem cano, do qual, para tristeza, ainda tinha caído uma brasa e estava acendendo um pano que estava em cima do sofá com a criança ali.
Não pensei duas vezes. Peguei o inocente no colo e pedi que ela apagasse aquele fogo. A criança estava toda molhada de xixi, muito gelada. Pedi para a mãe que me alcançasse uma fralda que eu iria trocar e fui tirando as roupinhas do menino (que não eram muitas). Para meu espanto, a fralda era um pacote de arroz e fronhas velhas. Eu achei que seria somente lavar a criança e colocar roupas secas e estaria pronto, mas não parou por aí. A genitália do menino estava com tanta assadura que parecia que ia cair fora. Fiquei pasma com a situação, arrumei a criança, entreguei à mãe e fui onde tinha sinal de celular. Comuniquei a situação à minha enfermeira chefe, que rapidamente falou o ocorrido ao médico da equipe e ao conselho tutelar. Nada contra ele, mas foram à residência e voltaram ao município relatando não ser verdadeira minha informação porque não tiveram coragem de entrar na casa, muito menos de pegar e olhar a criança.
A enfermeira, recebendo o relato dos conselheiros, entrou em contato com o médico, que mandou de imediato um carro buscar a mãe e a criança para a unidade de saúde para ser examinado, sendo constatado a situação terrível da assadura e também que ele tinha frênulo lingual, sendo levado ao hospital para procedimentos. Até o dia de hoje a criança não fala e possui vários problemas confirmados em exame. Está sendo acompanhado pela APAE do município e o caso encaminhado para a assistência social também do município, que forneceu material e foi construída uma casa nova para a família.
Durante o acompanhamento de uma puérpera, mãe de primeira viagem, que residia com os pais e não tinha apoio do pai do bebê, pude perceber o quanto aquele momento, que deveria ser leve, estava sendo angustiante para ela. Além de estar repleta de dúvidas e medos, ela ouvia muitos julgamentos e palpites e isso a deixava ainda mais irritada.
Como sabemos, o estado emocional/psicológico da mãe pode afetar o bebê em aspectos neurocomportamentais. Portanto, nesse primeiro momento em que a mulher se descobre como mãe e o bebê se descobre como um ser separado dela, o apoio e a calma são fundamentais para que ambos possam passar por esse processo de forma saudável e criar o vínculo mãe-bebê. Esse vínculo é essencial para o desenvolvimento do bebê e um divisor de águas na maternidade. No momento que ele ocorre, a mãe passa a compreender a linguagem corporal da criança, a ter mais autoconfiança e segurança para tomar as próprias decisões em relação ao filho, facilitando todo o processo e construindo, dia após dia, uma relação de amor, compreensão e confiança entre ambos.
Em razão da pandemia, os grupos de apoio a gestantes e puérperas haviam sido cancelados, deixando uma lacuna no pré-natal de muitas gestantes, principalmente aquelas que passavam pela primeira vez por essa experiência. Então, decidi prestar esse apoio no domicílio, em tempo real, já que todas as dúvidas da puérpera estavam surgindo naquele momento e cada dia surgiam mais e mais.
Com a presença de todos os membros da família, conversamos sobre a situação. No primeiro momento, houve um certo conflito entre os familiares, causado por opiniões divergentes sobre a forma de cuidar do bebê. Juntos, fomos amenizando esse conflito, abrindo espaço para que os pais da puérpera compartilhassem suas experiências. Ouvimos, filtramos algumas coisas e as dúvidas foram surgindo. Nesse primeiro dia, usamos como ferramenta de estudo a Carteirinha da Criança e conversamos sobre os direitos da criança, puericultura, marcos do desenvolvimento e vacinas. Já no primeiro dia, foi possível notar uma mudança total no clima daquela família. Estavam totalmente abertos para aprender, para melhorar e muito mais unidos.
Nos dias seguintes, falamos sobre aleitamento materno, pois a puérpera não estava amamentando, tendo o parto cesáreo como justificativa. O médico havia introduzido a fórmula. Então, compartilhei com ela a minha experiência, que foi semelhante, e ela se sentiu acolhida. Relatou que estava com medo que eu também a julgasse por não conseguir amamentar. Incentivei ela a não desistir e conversamos sobre formas de estimular o aleitamento. Conversamos sobre higiene do bebê, cuidados com o umbigo, sobre as técnicas para dar banho, troca de fraldas, sobre a crosta láctea, sobre a vida da mulher após a vinda do filho, sobre planejamento familiar, métodos contraceptivos, enfim, vários temas que surgiram durante esses primeiros dias.
O acompanhamento sempre segue. No entanto, ao fim dessa experiência, pude perceber a construção de uma grande mãe. Me orgulho muito de ter contribuído nesse processo. Daquela menina cheia de dúvidas e medos para uma mulher, mãe, cada dia mais confiante e segura e uma família cada vez mais unida.
Esse é o trabalho do Agente Comunitário de Saúde, que vai muito além do Cadastramento, da Visita Domiciliar, da Busca Ativa. Muito além de termos, o Agente é o vínculo com as famílias, é o olhar que enxerga além do que se é dito, é a empatia, o acolhimento. Talvez não possamos mudar o mundo, mas podemos mudar vários mundos todos os dias.
Quando Jorge entrou para a equipe da Estratégia da Saúde da Família de Vila Progresso como agente comunitário de saúde, ele já imaginava que poderia existir a possibilidade de fazer algo com seu talento de nascença: o desenho. Quando soube da existência do projeto “Dormir e Sonhar Evita Medicar”, começou, juntamente com as colegas agentes, Elen, Maria, Antônia e Jussara, a versão Kids do grupo, com alunos da Escola Hannemann, e logo tratou de sugerir a criação de um gibi para as crianças.
Não demorou muito para as ideias surgirem e Jorge pensava em fazer algo inspirado na Turma da Mônica, com um grupo de crianças com características visivelmente distintas umas das outras para representar a miscigenação brasileira. Foi pensando nisso que Jorge criou os dois primeiros personagens, a Tati e o Dudu. Era preciso cativar as crianças de alguma forma e Jorge começaria pela criação visual da dupla protagonista. Para o Dudu, ele teve como referência estética e da moda personagens de séries que ele assistia. Já com a Tati, Jorge quis que ela fosse negra, pois nunca viu um personagem principal negro em uma história em quadrinhos, exceto pelos super-heróis secundários das histórias, os quais ganhavam alguma edição de gibi lá de vez em quando. Queria que a Tati fosse a referência para meninas negras que iriam ler as histórias ou até mesmo para as mães dessas meninas que, na infância, acreditavam que não existia espaço de destaque para alguém da cor delas.
A edição piloto do gibi, feita em novembro de 2021, foi pensada para apresentar a turma da Tati e do Dudu, passando a ideia de que todos somos iguais porém diferentes à sua maneira, mostrando o cotidiano de crianças em uma escola. Na primeira edição, foi abordado o tema do respeito, promovendo a conscientização das crianças e dos pais para com o bullying feito nas escolas, com o intuito de evitar que isso aconteça na fase infantil.
Logo, o gibi foi bem aceito pelas crianças, pais, professores e comunidade, gerando, assim, a edição número 2, na qual Tati e Dudu voltam às aulas e são apresentados aos novos colegas com condições especiais, como crianças com deficiência física, visual, com síndrome de down e autismo. Nesta, Tati e Dudu fazem a inclusão desses personagens na turma.
Quando Jussara e Antônia se desligaram da equipe, foi mais difícil produzir as edições posteriores, pois precisava-se que os desenhos fossem coloridos, e, com a saída das duas, a produção demandaria mais tempo. Por isso, em reunião com a enfermeira coordenadora, Patrícia, decidiram que as edições seriam feitas bimestralmente. Então, na terceira edição, foi abordado o uso das “palavras mágicas”, com a finalidade de educar as crianças a usá-las em seu cotidiano. Na quarta edição, foram abordados os temas da alimentação saudável e saúde bucal. Maria, que era a responsável por criar as histórias, já está escrevendo a quinta edição, enquanto Jorge cria os desenhos e ambos ajudam Elen a colorir, antes da impressão das páginas.
Ninguém, nem mesmo Jorge e a equipe de agentes comunitários de saúde da ESF de Vila Progresso, imaginou a importância que esta forma lúdica e educativa fosse ganhar ao cair no gosto das crianças e pais. Mas a turma da Tati e do Dudu está cada vez mais popularizando-se e sendo conhecida por outras pessoas de outros lugares.